6.1.09

MEMORIAS DE UM ADEUS Durante os anos 80. quando eu morava na Rua das Perobas, Jabaquara, por conta de agradar minha filha Renata, aceitei receber para o convívio com nossa família uma linda cadela, pertencente aa nobre linhagem da raça “vira-latas”. Ela chegou em nossa casa logo depois da desmama. Era uma cadela bonita, de pelagem totalmente amarela. Por causa de suas orelhas sempre aguçadas e de seus olhos, em formal reunião familiar, concluímos por batizá-la pelo lindo nome de XERETA. Devidamente batizada, a cã passou a gozar de todos as prerrogativas VIPs da casa., logo se transformou numa ótima companhia para as crianças e numa brava guardiã dos nossos domínios. Quando nossa família mudou-se para a Vila Santa Catarina, foi ocupar uma casa na Rua Contos Gauchescos. O imóvel era excelente, tinha apenas a desvantagem de não ter um quintal tão grande como o quintal que havia na casa da Rua das perobas. Mesmo assim, a Xereta teve seu espaço definido e continuo a viver entre nós sua existência pacifica e carinhosa. Nossa permanecia nessa casa aconteceu até o início dos anos 90 quando, fomos instados a desocupar o imóvel, a pedido do proprietário, para que seu filho viesse mo0rar na Capital. Fomos, então, montar residência na Vila Mariana. Num belo apartamento situado à rua Gaspar Lourenço. Imóvel, como os anteriores, bastante amplo, apenas um detalhe para não ser perfeito. Não tinha quintal. A área de serviço era grande, mas não tanto para abrigar uma velha cadela que crescera sem maiores preocupações de como e onde fazer suas necessidades fisiológicas. Eu juro, tentamos por alguns tempos mantê-la na área de serviço. Compramos os apetrechos necessários . o tal do “pipidog”, e todas as demais parafernálias que nos indicavam, na tentativa de ensinar a nossa cadela. Tudo em vão. Ela não mostrava nenhum progresso com relação à sua reeducação. Nessa altura dos acontecimentos, meus ouvidos passaram a também não agüentar os recamos da “dona da pensão”. A ladainha era a mesma todos os dias: “Não agüento mais”, “essa área esta mais fedida do que esgoto de favela” “eu não nasci para ficar limpando sujeira de cachorro”, etc etc e tal... Eu já não tinha mais sossego. Em nova reunião familiar, agora com menos participantes, já que as filhas Renata e Roberta, devidamente casadas, não mais faziam parte do núcleo residente, foi deliberado que a Xereta deveria deixar o nosso convívio. Teríamos de buscar um local em que ela fosse aceita e pudesse terminar seus dias de maneira digna. Procurei e depois de várias indicações, achei um canil lá pros lados de Rudge Ramos onde a proprietária, uma médica veterinária, recebia cães e gatos. Uma espécie de orfanato e asilo. Conversei com a proprietária, expus o problema e ela me garantiu aceitar a Xereta, antecipando, inclusive, de que não iria doá-la para ninguém, que a reteria até o final de seus dias no próprio canil, r que eu ou qualquer membro de minha família teríamos garantido o acesso a visitas sempre que quiséssemos. Pronto, procura terminada, bastava, então, levar nossa Xereta até o local. Não tive escolha, eu fui a pessoa nomeada para essa missão. No dia aprazado, fui buscar a velhinha e coloquei nela a coleira. Eu estava sozinho, ninguém mais da família se predispôs a assistir a saída, todos se fecharam no meu quarto. Fixada a presilha da guia na coleira, a Xereta que sempre se antecipara aos meus passos e fazia questão de me puxar, recusava-se a se mexer, dando a entender que não queria sair pois sabia que não iria voltar. Fui obrigado a pegá-la no colo e levá-la até o carro. No trajeto, por diversas vezes, emitindo pequenos sons como se fosse gemidos, ela se aproximou e me lambeu a face e as mãos. Chegando ao local, tive de forçá-la a descer do carro. Aguardamos numa pequena fila nossa vez de ser atendidos. Uma única vez, encarei a cadela e tive a nítida impressão de ver uma lágrima rolar pelo seu focinho. Virei a cabeça e evitei um novo confronto. Então a médica nos chamou, fez a ficha de admissão, coletou minha assinatura e o cheque de doação que eu havia prometido, me agradeceu e levou a Xereta para o interior do canil. Lógico exercendo um pouco mais de força para arrastá-la pela guia da coleira. Eu, me sentindo cada vez pior, tratei de sair imediatamente, sem olhar para trás. Entrei no carro, dei um forte e prolongado suspiro, liguei a ignição e sai. Foi esta uma das mais tristes despedidas que fui obrigado a dar em toda a minha vida.